domingo, 31 de outubro de 2010

● Der Ring des Nibelungen [1]: Das Rheingold (1976)

O ANEL DOS NIBELUNGOS [1]:
O OURO DO RENO


"O ANEL DO NIBELUNGO é considerado uma obra de arte completa, pois envolve a literatura, a mitologia, a música, o canto, o teatro e as artes cênicas. É considerada uma obra muito abrangente, pois mostra desde o início do mundo, a natureza pura, intocada e em harmonia, até o apocalipse. Fala da psique humana, do consciente e do inconsciente e de quando o homem, ao se tornar consciente, rompeu com essa harmonia, tentando impor suas regras em benefício próprio. Descreve a trajetória do homem, seus erros, sua ambição desmedida que o leva a um processo de auto destruição. A tetralogia é baseada na mitologia, objetivando a catarse, como no teatro grego: a identificação do ser humano com os personagens e com a história, resultando no auto conhecimento.

A obra nos dá a oportunidade de refletir sobre os valores mais importantes e profundos de nossa existência e de vislumbrar um mundo transformado para as próximas gerações. Essa transformação deverá priorizar a valorização dos sentimentos, das relações humanas, da preservação da natureza, da integridade de caráter e de amor ao próximo. É impossível acreditarmos que a maneira como conduzimos nossas vidas e as leis de sobrevivência que regem o nosso mundo hoje, baseadas no uso abusivo da natureza, na leviandade moral e ética e na falta de solidariedade humana, possam perpetuar a nossa espécie."

Lúcia Schiffer, autora do livro Guia Prático do Ouvinte.


Primeira parte (em ato único) da Tetralogia do Anel da ópera de Richard Wagner.


Cena um:

Nas águas do rio do Reno, três ninfas (também conhecidas como Sereias de Água Doce, ou sereias sem cauda) são as guardiãs do ouro local.

As irmãs, Woglinde, Wellgunde e Floßhilde, brincam ao redor do ouro sem perceberem que estão sendo espionadas pelo gnomo Alberich. Desejando-as, ele resolve aparecer no local para divertir-se junto a elas.

No meio de discussões e brincadeiras, Woglinde e Wellgunde, as mais ingênuas das três, acabam revelando ao ambicioso e frustrado gnomo a lenda do Ouro do Reno, que, ao forjar um anel com o ouro que guardam no rio, o mundo ao seu possuidor pertencerá, mas para isso dever-se-á renunciar ao amor: "Lugt, Schwestern! Die Weckerin lacht in den Grund." – "Olhai, irmãs! Quem vem despertá-lo, a sorrir, no fundo do rio".

Enfurecido por ter seu ego maltratado pelas belas irmãs, num ato de violência e euforia, Alberich lança-se no rio, apanha uma quantidade de ouro e amaldiçoa o amor: “entreiße dem Riff das Gold, aschmiede den rächender Ring; denn hör es die Flut: so verfluch ich die Liebe” - "arrancando o Ouro da Rocha, forjarei o anel vingador; pois que ouçam as águas isto: Assim eu amaliçôo o amor".


Cena dois:

No alto das montanhas dali, encontram-se os deuses:

Wotan, rei dos deuses; Fricka, deusa do matrimônio e esposa de Wotan; Freia, deusa da juventude e irmã de Fricka; Donner e Froh, deuses do trovão e do sol e ambos irmãos de Wotan.

O começo da cena é sobre a discussão do pagamento de um castelo construído para os deuses feito pelos gigantes Fasolt e Fafner, que queriam como pagamento a deusa da Juventude. Após descobrirem que Wotan não estaria disposto a cumprir o trato e ceder a mão da bela, eles começam a entrar questionar sobre a integridade moral de Wotan, que, além do rei dos deuses, também tem o poder de legislação local para cumprir fidelidade e honra a todos os contratos, tratados e acordos para que possam ser feitos com segurança entre os povos, mediados por sua lança. Essa crítica de Wagner fica ainda mais forte quando um dos gigantes indaga de que um reles imbecil gigante é capaz de ter de dar uma lição de moral dessas a um nobre deus, que supostamente deveria ser poupado disso.

Genial!

Apesar de serem taxados de ignóbeis, o interesse dos gigantes em construir o castelo era ter a posse de Freia, a deusa da juventude, que cultiva as maçãs douradas que servem para dar eterna juventude aos deuses e, sem elas, todos enfraqueceriam rapidamente e morreriam. E isso deixaria livre o caminho dos gigantes dos julgos de Wotan.

Entra em cena o fiel companheiro de Wotan, o trapaceiro Loge, que já é conhecido por todos os cantos dos reinos por suas malícias e sabedorias. Ele já havia convencido a Wotan de contruir o castelo e jurar aos gigantes a forma de pagamento que eles queriam e, na hora da cobrança, ele daria um jeito dos gigantes mudarem de idéia. E a solução deu certo, após a história do poder do ouro do Reno ser contada. Isso interessou mais ainda os gigantes, que quando possuíssem o ouro, voltaria força para atacar os deuses. Ou seja: de qualquer maneira, o final dos deuses estavam na lista, mas agora com o poder do anel, isso ficaria ainda mais divertido.

("Immer ist Undank Loges Lohn!" Monólogo de Loge )


Cena três:

Abaixo aos céus donde os deuses habitam, Alberich, o gnomo possuidor do anel, domina por meios de escravidão os gnomos locais, mandando-os buscar mais ouro do Reno. Alberich obriga Mime, seu irmão, a construir um elmo (chamado de Tarnhelm) com ouros que lhe daria o poder da invisibilidade.

Entram em cena o Wotan e Loge, que determinados a buscar para si o ouro, resolver enfrentar Alberich de frente; mas não usando força bruta, apenas a lábia de Loge. A captura do ouro, do anel e do Tarnhelm não chegou a ser difícil; pouco depois, Alberich percebeu que havia sido enganado pelos visitantes, mas já era tarde. Este já havia sido amarrado e levado para os altos dos deuses.


Cena quatro:

De volta às montanhas, encontramos os todos personagens da cena dois (deuses e gigantes), além do recém-chegado Alberich. Este é ordenado a mandar trazer todo o ouro do Reno pelos gnomos da caverna. Sem se preocupar muito, Alberich os ordena através de um comando do anel que está em seu dedo que traga o ouro, que, após ser liberto, poderá reaver o ouro com um outro comando; mesmo com essa segurança, jurou-se vingar dos gnomos que o encaravam enquanto traziam todo o ouro, inclusive seu irmão Mime. Mas para sua surpresa, Wotan pediu-o o anel. “A vida, mas não o anel”, retrucava Alberich.

E após possuí-lo, Wotan sentira-se diferente, contido numa posse de poder fora do comum. Todo o ouro fora entregue aos gigantes, como prometido, mas a ambição tomou de conta dos gigantes e eles só se satisfariam quando todo o ouro fosse entregue, ou seja, incluindo o anel. Tomado por um sentimento de raiva, Wotan preferia que Freia fosse levada ao invés de ceder todo aquele poder. É quando entra em cena uma figura misteriosa, Erda, deusa da terra, figura misteriosa detentora de toda sabedoria, tida como ‘’mãe universal’’ que aparecerá também em outras partes da tetralogia. Segundo Lucca, o despertar de Erda é o momento em que ela acorda e emerge à superfície, parece uma alusão aos raros momentos em que, altamente inspirada, nossa consciência percebe elementos profundos, que ordinariamente ignoramos, embora sejam inerentes a nosso espírito”. Num lento e sugestivo andamento melódico, Erda dirige-se a Wotan, numa firme e zelosa advertência: “Cede, Wotan, cede! Foge à maldição do anel! Tenebrosa ruina, sem remissão, sua posse te causará.” (Weiche, Wotan, weiche! Flieh des Ringes Flucht! Rettunglos dunklem Verderben weiht dich sein Gewinn.”)

( Erda )

Após ceder, por fim, o anel aos gigantes, Freia é libertada. E logo após o anel ser entregue aos gigantes,temos uma tomada que lembra muito a primeira cena do épico O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei, onde os irmãos brigam pela posse do anel até a morte; na ópera vemos a mesma cena. Fasolt, percebendo que o irmão está armazenando para si uma parcela exagerada, o que resultaria numa partilha desigual, e que ele, Fasolt, ficaria em prejuízo, reclama com Fafner, dizendo que aquilo não está direito. Fafner, arrogante, responde com um argumento absurdo: “És um janota, a quem me foi difícil convencer a aceitar o ouro em lugar da garota. Se ficasses com ela, não a dividirias com ninguém; é justo, portanto, que seja minha a maior parte do tesouro”. Indignado, Fasolt pede aos deuses que atuem como árbitros daquela questão. Wotan dá-lhe as costas, com desprezo, e Loge tem a idéia de sugerir a Fasolt que fique com o anel e deixe o resto todo para Fafner. Fasolt, então, exige o anel, alegando que a jóia corresponde aos olhos de Freia. Fafner, no entanto, não quer ceder o anel, e os dois irmãos passam da discussão à luta corporal; Fasolt toma o anel à força, mas Fafner dá-lhe um golpe mortal com a clava. Fasolt cai por terra, e, enquanto ainda agoniza, Fafner retira-lhe do dedo o anel, e diz, com desprezo: “Agora sonha com a tua Freia; no anel nunca mais porás a mão”. Fasolt morre, e enquanto Fafner conclui o ensacamento do tesouro, ocorre uma forte comoção entre os deuses, após a cena de fraticídio que acabaram e presenciar. Wotan entende, então, a força da maldição de Alberich, que acabara de apresentar seu primeiro efeito.

Por fim, os deuses, juntos, caminham pela ponte que dá acesso ao castelo (Valhalla, assim batizado por Wotan), que fora construído sobre efeitos de roubos, mentiras e trapaças. A ópera é encerrada com o sussurro desesperados das irmãs lá de baixo “Falsch und feig ist, was dort oben sich freut!” (falso e covarde é tudo aquilo que lá em cima se regozija).

Essa gravação é com Donald McIntyre (Wotan), Martin Egel (Donner), Siegfried Jerusalem (Froh), Heinz Zednik (Loge), Hanna Schwarz (Fricka), Carmen Reppel (Freia), Ortrun Wenkel (Erda), Hermann Becht (Alberich), Helmut Pampuch (Mime), Matti Salminem (Fasolt), Fritz Hübner (Fafner), Norma Sharp (Woglinde), Ilse Gramatzki (Wellgunde), Marga Schimm (Floßhilde) .

Regida por Pierre Boulez, realizada em Bayreuth (ALE) em 1976.


Observações:

#1: Os librettos em português, assim como suas sinopses e análises críticas podem ser lidas através do site do Luíz delucca.

#2: A versão em desenho d'O Ouro do Reno pode ser conferida no Youtube clicando aqui. (O áudio das árias estão em inglês, fujindo um pouco da originalidade da peça alemã no intuito de incentivar crianças a entenderem o contexto geral).

domingo, 24 de outubro de 2010

● Tristan und Isolde (2001)



Ópera de três atos de Richard Wagner.

História do século XII, de Tristão e Isolda, que influenciou outras histórias de amor do mundo inteiro, inclusive serviu de base para Romeu e Julieta, de Shakespeare.

A história é adaptada de diversas maneiras, variando conforme a interpretação do diretor (isso vale principalmente para o cinema). A única interpretação operística foi escrita por Richard Wagner. Então a única coisa que pode mudar em apresentações no palco é o cenário e a regência.

Já na versão cinematográfica, a única que tive oportunidade de ver, optou por uma interpretação que fugisse à lenda.

Vamos às diferenças: a parte específica que torna crucialmente diferente a interpretação da obra é o momento em que Isolda deverá conhecer seu futuro marido, Marco, mesmo já estando apaixonada por Tristão. Uns preferem interpretar que, antes a esta cena, Isolda teria dado veneno a Tristão e, juntos beberiam até cair mortos. Mas por um mero engano, ambos tomaram uma porção do amor em que ficaram mais apaixonados ainda e, ao invés de morrerem, preferiram aceitar o destino infeliz, sendo que em curtos intervalos de tempo, encontrar-se-iam escondidos para terem relações; outros interpretam trazendo a história num contexto mais real: nada de porções do amor. O sentimento que um tem para com o outro é meramente verdadeiro. E isto é o que difere a ópera do cinema; a ópera ta limitada à versão de Wagner, que pra mim, é a mais verdadeira, já que Tristão e Isolda não passam de uma lenda de amor.

Não que a versão do cinema não seja interessante, porque a é. Há também uma versão nacional muito interessante de Tristão e Isolda, contada em segundo plano, visto que a história principal passa-se de personagens que se apaixonam durante a montagem de uma peça de teatro. O nome desse filme é Romance, com Wagner Moura e Letícia Sabatella.

Essa ópera que assisti tem tendências modernistas com traços expressionistas. E isso particularmente foi o que me deu ânimo pra ver, em especial, essa versão de 2001 com Ben Heppner no elenco. Entre ver uma ópera com dezenas de efeitos e até cavalos de verdade em palco, prefiro ver esse jogo de cores no cenário; o detalhe dos bonecos no chão do terceiro ato também foi simples, mas genial. É como assistir a um clássico do cinema Expressionista contando uma história de amor lendária cantada por grandes nomes e regida pelo mestre Levine. Geralmente as óperas que vejo, em sua grande maioria, são regidas por ele.

(Rei Marco descobre que está sendo traído por Tristão - "Rette dich, Tristan!" e "Tatest du's wirklich? Wähnst du das?")


E para quem morre de suspiros com a história superestimada de Romeu e Julieta, antes de mais nada, veja a história de Tristão e Isolda; assista ao filme e veja o contexto histórico; assista à ópera e sinta o contexto psicológico (quatro horas de duração em torno de árias belíssimas), em especial o segundo ato e a última cena do terceiro (Liebestod).

(Liebestod por Eaglen em outra gravação)


Essa versão operística da obra é com Ben Heppner (Tristan), Jane Eaglen (Isolde), Katarina Dalayman (Brangäne), Brian Davis (Melot) e René Pape (King Marke). Regida por James Levine, realizada no MET (NY), em 2001.

A versão cinematográfica é com James Franco (Tristan), Sophia Myles (Isolde), Rufus Sewell (King Marke). Dirigido por Kevin Reynolds e escrito por Dean Georgaris, em 2006. Vide IMDB.

domingo, 26 de setembro de 2010

● Elektra (1989)


(Eva Marton no papel de Elektra)



Ópera de um ato de Richard Strauss.

A história é teoricamente bem simples: Elektra é uma mulher que passa a viver perturbada depois da morte de seu pai (Agamenon) assassinado covardemente a mando de sua mãe (Klytämnestra) e o amante dela (Egisto). Elektra passa viver trancada dentro do palácio com sua irmã, Chrysotemis, que apesar de depreciativa, ainda acredita na felicidade e até sonha em casar e ter filhos.

Mas Elektra, cada vez mais consumida pelo ódio à sua mãe e ao seu padrasto, num estado de devaneio, planeja finalmente matá-los na calada da noite. Enquanto planeja o assassinato, a história desenrola-se através dos diálogos com sua irmã –e é aí onde a parte polêmica entra, o incesto e lesbianismo-. Ainda há quem discorde de que houve incesto, que isso não passe de uma cultura histórica, que ganhou dimensão maior com o Complexo de Elektra, de Jung. A peça em si não se aprofunda nesse aspecto, mesmo a gente podendo inferir algumas coisas no modo como a Elektra olha pra sua irmã quando esta está em seu monólogo sensualizando o casamento e também quando há aquele diálogo com excesso de toque entre elas. Leve em conta também a seguinte coisa: Elektra é uma mulher visivelmente perturbada, abatida, seu visual excessivamente depressivo a definia como morta-viva e sua irmã, apesar de tudo, ainda conservava-se muito bem. E há quem diga que toda essa sede de vingança se dá ao fato de Elektra ter sentido desejo por Agamenon quando ele era vivo. Uma família que visivelmente sofria de problemas internos desde há muito tempo.


(Klytämnestra explicando os pesadelos que sofre)

(Monólogo, um dos momentos de devaneios de Elektra. "Allein! Weh, gaiz allein!")

Há de destacar a bravura de qualquer intérprete que pegue esse papel principal (no meu caso, o da Marton). A ópera tem aproximadamente 100 minutos de duração e grande parte dos diálogos são ditos pela protagonista (lembre-se que é uma ópera de ato único); com um pouco mais de uma hora de duração, eu ficava preocupado não somente com a Elektra-personagem, mas com Elektra-atriz, pois requer muito fôlego pra recitar aqueles diálogos intermináveis em alemão! Marton corria de um lado do palco para outro, fazia forças e expressões, enrolava-se em cordas, debatia-se, CHORAVA bastante em cena (por diversas vezes!) e, na última cena, aquele delírio final em que possuída loucamente pela vitória do assassinato cruel, Elektra dança até cair morta.



(O reencontro. "Orest! Orest!")

Esta gravação é com Eva Marton (Elektra), Brigitte Fassbaender (Klytämnestra), Cheryl Studer (Chrysosthemis), James King (Egisto) e Franz Grundheber (Orest). Regida por Claudio Abbado, realizada no Vienna State Opera, em 1989.

Uma fantástica obra, sem dúvidas, que merece ser vista e revista por diversas vezes; e a cada detalhe que eu puder inferir, voltarei aqui para acrescentar essas informações.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

● Pagliacci (1994)

(Luciano Pavarotti interpretando o palhaço Canio. Creio que esta foi uma das apresentações de Pavarotti que, além de estar perfeito (como sempre) na parte vocal, destacou-se muito também em sua parte cênica.)


Ópera trágica em dois atos de Ruggero Leoncavallo.

"Uma vez um homem foi procurar ajuda ao psiquiatra por queixar-se de depressão e sentir-se vazio; eis que o médico o receita 'Vá para a cidade! Pois o circo estará lá esta noite. Vá se divertir um pouco!'. O paciente, frustrado, levanta-se e, antes de sair do consultório, olha para o médico e diz 'Mas doutor... eu sou o palhaço!'"

É com base nesse apócrifo que a ópera Pagliacci se baseia.

Iniciado por um prólogo, o personagem Tonio vem nos avisar que esta não é mais uma história de palhaço, mas a DO palhaço: "(...)Vocês ouvirão gritos de agonia e dor; procurem perceber, não pelos nossos pobres trajes, mas pelas nossas almas, que somos homens de carne e sangue respirando o ar deste mundo solitário... assim como vocês!"

(O Prólogo)


PRIMEIRO ATO:

A chegada do circo parece alegrar a todos num pequeno vilarejo. Canio, o palhaço-líder do grupo, traz de volta a sua trupe: Nedda, sua esposa, Tonio e Peppe. Após a recepção calorosa do vilarejo, que recebem a notícia que às onze da noite irão assistir a uma peça, o palco fica apenas com os personagens circenses.

Todos eles parecem estar insatisfeitos com alguma coisa. Enquanto Canio sai de cena, vemos o triste monólogo de sua esposa, num momento de nostalgia e frustração, criticando o temperamento do seu marido. Logo após, entra em cena Tonio, que após revelar que a ama, tenta estuprá-la. São nesses rápidos intervalos que vemos o que realmente se passa na cabeça dos personagens: todos são vazios. Na verdade, aqui não há mocinhos e vilões; pode-se inicialmente criticar o comportamento de Tonio na tentativa de estupro à Nedda; mas esta não é fiel ao seu (violento) marido Canio, que havia a tirado da miséria no passado, dando lhe comida, emprego e, por quê não dizer o "casamento". E grande parte do comportamento de Tonio pode ser explicado: sozinho, Tonio se sente feio e desinteressante e por passar grande parte do tempo com a trupe, acaba criando nela seu único universo. E quanto mais Nedda debocha de seu sentimento, mais revoltado ele fica.

(Nedda nos braços de Silvio, declarando-se e planejando a fuga)

Amargurado por não conseguir Nedda, Tonio resolve dizer a Canio que sua esposa planeja fugir com um homem que mora na vila onde será apresentado o espetáculo. Incrédulo, vemos o incrível monólogo de Canio, uma das árias mais famosas dessa ópera: Recitar... Vesti la Giubba.

Recitar! Mentre preso dal delirio
non so più quel che dico e quel che faccio!
Eppure... è d'uopo... sforzati!
Bah, seti tu forse un uom?

Tu sei Pagliaccio!

Vesti la giubba e la faccia infarina.
La gente paga e rider vuole qua.

E se Arelcchin t'invola Colombina
ridi, Pagliaccio e ognun applaudirà!
Tramuta in lazzi lo spasmo ed il pianto;
in una smorfia il singhiozzo e 'l dolor...

Ridi, Pagliaccio, sul tuo amore infranto,
ridi del duol che t'avvelena il cor!


Recitar,enquanto tomado pelo delírio
não sei mais aquilo que digo e aquilo que faço.
Todavia é necessário. Esforça-te! Vai!
És tu talvez um homem?

Tu és Palhaço.

Veste o casaco e a cara enfarinha.
O povo paga e quer rir aqui.

E se Arlequim te rouba a Colombina,
ri Palhaço e cada um aplaudirá.
Muda em piadas o espasmo e o choro,
numa careta o soluço e a dor.

Ah! Ri Palhaço, sobre o teu amor partido.
Ri da dor que te envenena o coração!






















SEGUNDO ATO:


Por fim, a população aparece para assistir ao espetáculo da história de Colombina. Aqui a história se mistura no palco, dando diálogos de duplo sentido (realidade x ficção). E detalhe: a escolha da apresentação não poderia ter sido melhor: Colombina, Pierrot e Arlequim. Canio, já sabendo do que sua esposa está tramando, força-a em palco a revelar o nome do homem que a levará consigo na fuga. Todos da platéia estão admirados com a a realidade em que os atores estão atuando (até comentam ''parece tão real"). E o final, por fim, só assistindo.


A versão da ópera que você observa nas screeners é com Luciano Pavarotti (Canio), Juan Pons (Tonio) e Teresa Stratas (Nedda). Regida por James Levine, dirigida por Franco Zefirelli e realizado no Metropolitan Opera (NY), em 1994.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

● Tosca (1978)

(a gravação que tenho é esta da capa acima; é circulada livremente por aí na rede Ed2k/Torrent e extraída de um VHS antigo com hardsubs -legendas fixas- em inglês)

Ópera de três atos do compositor Giacomo Puccini, trabalhada em diversos contextos: Mário, do âmbito artístico; Tosca, operístico; Scarpia (e Angelotti), político. E um subtema comum entre eles: a fé.

Assim como em Turandot, a protagonista tem o domínio do amor das principais figuras masculinas, é forte nas palavras e é bastante desejada (a figura da beleza quase(?) inalcançada) - essas características principais nas mulheres com certeza é uma repetição marcante de Puccini em suas obras; mas o que difere Tosca da princesa de Pequim é porque a primeira é totalmente entregue ao amor e à paixão, enquanto a segunda é fria e frustrada.

O que mais me chamou atenção nessa obra foi a religiosidade nela presente: no primeiro ato, nos duetos entre Mario Cavaradossi e Floria Tosca, vemos a preocupação destes perante Madona. Numa crise de ciúmes e promessas de amor, ambos inicialmente parecem não se importar que estão na igreja, mas ao se darem conta, resolvem deixar o que tem pra resolver fora dali por questão de respeito à imagem. No segundo ato, tem-se de um lado Scarpia desmerecendo os valores de Deus (já que pra ele conquistar Tosca é mais excitante) e Tosca do outro sentindo-se injustiçada do porquê de tanto sofrimento se a vida inteira ela foi só dedicação à igreja. Onde estaria Deus? Repare na cena abaixo [Obs.: Cheguei a lembrar de uma frase célebre de Chico Buarque/Tom Jobim: “Enfim, hoje na solidão ainda custo a entender como o amor foi tão injusto a quem só lhe foi dedicação”].


"Por que, Deus, me recompensas desta maneira?"

(Monólogo de Scarpia, início do segundo ato)

O terceiro ato, por fim. Um final não tão inesperado para os mais atentos que entenderam a sacada da ordem de execução “à La Palmieri”. E, se não entenderam, ao final da ópera: a surpresa.

A personalidade de Tosca oscila entre o fraco e o forte: respectivamente falando, no primeiro caso, quando ela se sente abandonada por Deus ao ter de tomar uma decisão difícil, quando é enganada pelos pensamentos maldosos de Scarpia tentando envenená-la contra Mário e quando ela trai a confiança deste ao revelar o esconderijo de Angelotti; no segundo caso, quando determinada em nome do amor, ela revela o esconderijo para não ver seu amado sofrendo na sala de tortura e, quando por fim, vemo-la vingando-se de Scarpia.

No contexto político: Napoleão e a briga de classes. Isto é fato quando Mario comemora a vitória de Napoleão; esse assunto poderia ter sido mais detalhado, mas como o objetivo desta ópera não é focado totalmente na política, logo isso é esquecido e desviado de volta ao contexto principal (o romance) quando Scarpia parece pouco se importar com quem perdeu/ganhou a batalha, já que naquela altura do campeonato Tosca já ocupava o desejo número um do vilão. O contexto político pode não ter sido muito óbvio aqui, mas para época foi de maior relevância (veja este trecho extraído do site Wikipedia):

Quando a ópera estreou, a 14 de janeiro de 1900, a atmosfera política na Itália era tensa, com muita agitação revolucionária de caráter socialista e anarquista contra a monarquia e a política reacionária do rei Umberto I, que seria assassinado em Monza seis meses mais tarde. A rainha e o primeiro ministro assistiram à estréia, e por essa razão alguns temiam um ataque terrorista contra o teatro. Tosca era uma ópera profética do século que estava para começar. É uma ópera sangrenta, e este seria um século sangrento. Scarpia parece prenunciar Hitler, Stalin e outros ditadores. Quando Tosca salta para a morte, no momento final da ópera, parecemos ouvir o riso de Scarpia, vitorioso mesmo depois de morto. Quem vence, afinal? As forças do mal ou as forças do bem? A pergunta permanece sem resposta. "Perante Deus, Scarpia. Perante Deus.

Essa versão é com Luciano Pavarotti (Cavaradossi), Shirley Verrett (Floria Tosca) e Cornell Macneil (Scarpia) no elenco. Regida por James Levine, realizado no MET, em 1978.

sábado, 4 de setembro de 2010

● Turandot (1988)



(Eva Marton, digníssima no papel da princesa Turandot. Nesta cena, do segundo ato, a princesa revela ao estrangeiro do porquê de tanto ódio. No final dessa matéria você poderá ver a letra no idioma original e a tradução)


NOTA:

Turandot foi a última obra do compositor Giacomo Puccini, que não terminou de finalizá-la devido à sua morte.

Essa obra foi finalizada mais tarde por Franco Alfano. Mas o final não agrada a todos... nem a mim.

Para quem não viu a ópera ainda, pule para o parágrafo seguinte, pois este contém spoilers: o final, tão inaceitável pela grande parte dos expectadores de uma maneira geral, se dá nas últimas cenas, quando a princesa vai revelar o nome do príncipe (o nome dele é amor). Puccini que em outras obras manteve àquele paralelismo de que o bom morre bom e o mau morre mau, aqui não condisse. Alfano realmente pegou um grande abacaxi... a melodia já havia sido composta e encaixar um final naquele curto espaço de tempo foi realmente desafiante. Turandot, a fria, a impiedosa, que resistira 90% da peça em não se casar, cedeu-se muito ligeiro ao final belo e feliz. A chave disso tudo deveria ser a morte de Liù, que morreu em nome do amor. Mas em nenhuma outra gravação que ouvi, convenci-me que Turandot mudara de opinião a partir da morte da escrava. E no rápido diálogo que Turandot e Calaf tiveram, não foi o suficiente para mudar a opinião de uma pessoa que carregara tanto ódio por anos. Em 2001, um compositor chamado Berio compôs um final diferente. Mas ainda não tive oportunidade de conhecê-lo.

Se você NUNCA ouviu uma ópera completa (ou mal teve paciência de ver um pedacinho sequer), comece por essa. Procure saber da história. Depois ouça as gravações disponíveis pela web na voz de grandes tenores/sopranos.

Se não domina outro idioma além do português, será necessário fazer a leitura do Libretto (“roteiro” com os diálogos escritos) em português para ver a ópera depois (Clique aqui para ler). Será melhor se você dominar ao menos o inglês –ou outra língua que possua nas legendas disponíveis– pra que se possa assistir a ópera e ler seus diálogos simultaneamente, como num filme legendado.


ENREDO:

Riquíssima em detalhes, a história é trabalhada em diversos planos: o começo enigmático, em que o Mandarim da região local onde se passa a história anuncia que "para se casar com a filha do Imperador, é necessário acertar os três enigmas por ela proposto; caso não consiga desvendá-los, o candidato deverá dar-lhe em troca sua cabeça".

Logo depois surge em cena um homem desconhecido e sua escrava; pouco após, seu filho.


(O estrangeiro, seu pai e a escrava, no reencontro. Início do primeiro ato)

Enquanto no fundo do cenário a correria toma de conta da população local, pois o príncipe da Pérsia havia tentado os três enigmas e errara em um deles e todos esperavam a execução de sua cabeça, à frente havia um diálogo entre pai-filho-escrava. Observe que a população local, apesar de sofrida sob o regimento da tirania de Turandot, também apresenta um vínculo sádico à execuções, pois todos aguardam ansiosos a chegada da lua para ver a cabeça do príncipe da Pérsia exposta ("Perchè tarda la luna?"). Grande parte das conversas é feita por entrelinhas; uma delas é chave principal para entendimento mais na frente da relação do estrangeiro com Turandot. O resto já é teoricamente previsível, mas não menos brilhante. O protagonista, desconhecido, aceita participar do enigma após ver Turandot na execução do Príncipe da Pérsia. O desenrolar da história é muito intenso.




(Finalização do terceiro ato, onde todos aguardam a decisão final de Turandot)

A versão da ópera que você observa nessas screeners (cenas) é com Plácido Domingo, Eva Marton e Leona Ritchell no elenco. Regida por James Levine, dirigida por Franco Zefirelli e realizado no Metropolitan Opera (NY), em 1988.




(Início do Segundo Ato: Ping, Pang e Pong, no discurso sobre a história dos príncipes que já perderam a vida tentando conquistar a princesa Turandot)


(Após o estrangeiro anunciar a todos da cidade de Pequim que não vai revelar o seu segredo, com a belíssima ária "Nessum Dorma", Ping, Pang e Pong ofertam ouro e mulheres belas pra que ele desista da ideia de ficar com Turandot)

("Tu che di gel sei cinta!". Momento em que Liù revela a todos que ama o príncipe há muito tempo... e questiona não entender do porquê de tanta frieza da princesa que não se rende ao amor dele)

("Ché è mai de me". O príncipe, após ficar revoltado com que Turandot acabara de provocar à Liù, acaba revelando seu segredo, deixando a decisão final de se casar por conta da princesa)


Finalizo esta resenha com uma das árias mais belas: "In questa reggia", onde Turandot nos explica do porquê de tanta amargura em seu peito (no segundo ato).


TurandotTurandot
In questa reggia, or son mill'anni e mille,Neste reino, há milhares e milhares de anos
un grido disperato risonò.um grito desesperado ressoou.
E quel grido, traverso stirpe e stirpeE aquele grito atravessou gerações e gerações
qui nell'anima mia si rifugiò!e refugiou-se aqui em minh'alma!
Principessa Lou-Ling,A Princessa Lou-Ling,
ava dolce e serena che regnaviantepassada doce e serena que reinava
nel tuo cupo silenzio in gioia pura,no seu profundo silêncio em pura alegria,
e sfidasti inflessibile e sicurae desfiando inflexível e segura
l'aspro dominio,o escambroso domínio
oggi rivivi in me!hoje revive em mim!
La FollaMultidão
Fu quando il Re dei TartariFoi quando o Rei dos Tártaros
le sette sue bandiere dispiegò.as suas sete bandeiras desfraldou.
TurandotTurandot
Pure nel tempo che ciascun ricorda,No entanto, no tempo que cada um recorda
fu sgomento e terrore e rombo d'armi.Foi um choque e barulho de terror de armas.
Il regno vinto! Il regno vinto!O Reino foi vencido! O Reino foi vencido!
E Lou-Ling, la mia ava, trascinataE Lou-Ling, minha antepassada foi arrastada
da un uomo come te, come tepor um homem como você, como você
straniero, là nella notte atroceestrangeiro, na noite terrível
dove si spense la sua fresca voce!onde se extinguiu sua fresca voz!
La FollaMultidão
Da secoli ella dormePor séculos ela dorme
nella sua tomba enorme.em seu túmulo enorme.
TurandotTurandot
O Principi, che a lunghe carovaneÓ príncipes, que trazem caravanas
d'ogni parte del mondode todo o mundo
qui venite a gettar la vostra sorte,que aqui vem a jogar a vossa sorte,
io vendico su voi, su voieu vingo sobre vós, sobre vós,
quella purezza, quel grido e quella morte!aquela pureza, aquele grito e aquela morte!
Quel grido e quella morte!Aquele grito e aquela morte!
Mai nessun m'avrà!Nunca me terás!
Mai nessun, nessun m'avrà!Nunca, nunca me terás!
L'orror di chi l'ucciseO horror de quem matou
vivo nel cuor mi sta.está vivo em meu coração.
No, no! Mai nessun m'avrà!Não, não! Ninguém nunca me terá!
Ah, rinasce in me l'orgoglioAh, renasce em mim o orgulho
di tanta purità!de tanta pureza!
Straniero! Non tentar la fortuna!Estrangeiro! Não tente a sua sorte!
Gli enigmi sono tre, la morte una!Os enigmas são três, a morte uma!